*Por Marcos Vinicius Ottoni, sócio-fundador do Caldeira, Lôbo e Ottoni; Coordenador-geral Jurídico da Coordenador Geral Jurídico da CNSaúde
É necessário que haja garantias efetivas de custeio não só para o setor público, mas também para o privado. A questão do piso nacional da enfermagem, que aflige o setor de saúde como uma bomba-relógio, continua sem solução razoável. As medidas legislativas adotadas para retirar os entraves constitucionais à aplicação da Lei 14.434/2022 não sanaram os seus principais problemas.
E a prestidigitação orçamentária que se seguiu, visando superar os problemas de custeio que deram causa à suspensão liminar da lei pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), não afastou o temor de que faltarão recursos para cobrir um aumento de custos com salários estimados em R$ 16 bilhões anuais.
O receio – compartilhado por estados, municípios, Santas Casas e instituições privadas da saúde, com ou sem fins lucrativos – é de que a adoção do piso leve a uma explosão dos orçamentos públicos, a dispensas em massa e ao fechamento de estabelecimentos de saúde.
A recém-promulgada Emenda Constitucional 127/22 não desatou o nó do custeio ao direcionar para tal fim recursos do superávit financeiro de fundos públicos e do Fundo Social do Pré-Sal. Conforme expressou em nota pública a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), os superávits dos fundos são incertos, enquanto o pagamento do piso deverá ser feito com ou sem superávit.
Além disso, como nenhum recurso novo foi efetivamente criado pela emenda, qualquer eventual uso de saldos desses fundos amplia automaticamente os gastos públicos em um orçamento que sabidamente não tem espaço para gastos adicionais nem previsão de pagamentos de aumentos salariais nos valores exigidos pela lei do piso.
A existência desses saldos é meramente contábil e seu uso precisa estar autorizado por um orçamento super apertado. Não à toa os recursos de muitos desses fundos vêm se acumulando e foram recentemente usados apenas como forma de abater dívida pública.
O governo recentemente criou um grupo de trabalho para pensar em uma possível regulamentação, mas os milhares de prestadores de serviços que hoje atendem o SUS, como hospitais filantrópicos e clínicas privadas de diálise, e que eventualmente se beneficiariam desses recursos, ainda não foram chamados para a discussão.
Entre as instituições privadas, os temores em relação ao impacto financeiro do piso também não foram dissipados. Em que pese haver na PEC a previsão de repasse de parte desses recursos para entidades privadas filantrópicas, não há hoje mecanismos que assegurem esse repasse de forma institucional. Sua efetivação dependerá da ação discricionária de gestores públicos que precisam desses recursos para atender a outras demandas prementes da saúde.
Além disso, a solução proposta pela EC 127/22 alcança apenas o SUS e os estabelecimentos que direcionam, no mínimo, 60% de sua atividade ao SUS.
Não há, até agora, a indicação de fontes de recursos ou compensações para os mais de 250 mil estabelecimentos de saúde privada com fins lucrativos, em sua maioria de pequeno ou médio porte, que arcarão com um aumento nos custos anuais de, pelo menos, R$ 5,2 bilhões. Vale lembrar que boa parte desse custo será pago pelos mais de 50 milhões de beneficiários de planos de saúde através do aumento de suas mensalidades, com alguns tendo que voltar ao sistema público, onerando o SUS.
Diante desse quadro, entidades representativas do setor privado de saúde reivindicam que, caso a lei prevaleça, apesar de suas inconstitucionalidades, é necessário que haja garantias efetivas de custeio não só para o setor público, mas também para o privado, de forma que se possa viabilizar o pagamento do piso nacional da enfermagem sem mergulhar o setor em uma aguda crise financeira e operacional.
Seria ilusão acreditar que, com as medidas adotadas até aqui, será possível ao setor de saúde fazer frente ao aumento bilionário de custos do piso nacional da enfermagem, sem ajuste dramático no quadro de pessoas empregadas e na qualidade dos serviços.
É fundamental, portanto, que se avance na busca de alternativas realistas que viabilizem a merecida valorização da categoria dos enfermeiros, sem atropelar a Constituição e sem colocar em risco a saúde dos estabelecimentos e a sustentabilidade dos sistemas público e privado.